Eram
sete horas da noite quando entrei no carro, ali no Jardim Botânico. Senti que
alguém me observava enquanto punha o motor em movimento. Voltei-me e dei com
uns olhos grandes e parados como os de um bicho, a me espiar através do vidro
da janela junto ao meio-fio. Eram de uma negrinha mirrada, raquítica, um fiapo
de gente encostado ao poste como um animalzinho, não teria mais que uns sete
anos. Inclinei-me sobre o banco, abaixando o vidro:
-
O que foi, minha filha? - perguntei, naturalmente, pensando tratar-se de
esmola.
-
Nada não senhor - respondeu-me, a medo, um fio de voz infantil.
-
O que é que você está me olhando aí?
-
Nada não senhor - repetiu. - Tou esperando o ônibus...
Onde
é que você mora?
-
Na Praia do Pinto.
-
Vou para aquele lado. Quer uma carona?
Ela
vacilou, intimidada. Insisti, abrindo a porta:
-
Entra aí, que eu te levo.
Acabou
entrando, sentou-se na pontinha do banco, e enquanto o carro ganhava velocidade
ia olhando duro para a frente, não ousava fazer o menor movimento. Tentei puxar
conversa:
-
Como é o seu nome?
-
Teresa.
-
Quantos anos você tem, Teresa?
-
Dez.
-
E o que estava fazendo ali, tão longe de casa?
-
A casa da minha patroa é ali.
-
Patroa? Que patroa?
Pela
sua resposta, pude entender que trabalhava na casa de uma família no Jardim
Botânico: lavava roupa, varria a casa, servia a mesa. Entrava às sete da manhã,
saía às oito da noite.
Hoje
saí mais cedo. Foi 'jantarado'.
-
Você já jantou?
Não.
Eu almocei.
-
Você não almoça todo dia?
-
Quando tem comida pra levar de casa eu almoço: mamãe faz um embrulho de comida
pra mim.
-
E quando não tem?
-
Quando não tem, não tem - e ela até parecia sorrir, me olhando pela primeira
vez. Na penumbra do carro, suas feições de criança, esquálidas, encardidas de
pobreza, podiam ser as de uma velha. Eu não me continha mais de aflição,
pensando nos meus filhos bem nutridos - um engasgo na garganta me afogava no
que os homens experimentados chamam de sentimentalismo burguês.
-
Mas não te dão comida lá? - perguntei, revoltado.
-
Quando eu peço eles dão. Mas descontam no ordenado. Mamãe disse pra eu não
pedir.
-
E quanto é que você ganha?
Diminuí
a marcha, assombrado, quase parei o carro! Ela mencionara uma importância
ridícula, uma ninharia, não mais que alguns trocados. Meu impulso era voltar,
bater na porta da tal mulher e meter-lhe a mão na cara.
-
Como é que você foi parar na casa dessa... foi parar nessa casa? - perguntei
ainda, enquanto o carro, ao fim de uma rua do Leblon, se aproximava das vielas
da Praia do Pinto. Ela disparou a falar:
-
Eu estava na feira com mamãe e então a madame pediu para eu carregar as
compras. E aí no outro dia pediu a mamãe pra eu trabalhar na casa dela, então
mamãe deixou porque mamãe não pode deixar os filhos todos sozinhos e lá em casa
é sete meninos fora dois grandes que já são soldados. Pode parar que é aqui
moço, obrigado.
Mal
detive o carro, ela abriu a porta e saltou, saiu correndo, perdeu-se logo na
escuridão miserável da Praia do Pinto...
(Fernando Sabino)
01. De acordo com o texto responda:
a) A menina não era pedinte: trabalhava,
estava à espera de um ônibus, para voltar para casa; o que leva o narrador a
pensar que ela queria esmola?
b) Por que o narrador considera natural que aquela menina estivesse
pedindo esmola?
02. De acordo com as comparações responda:
“... dei
com uns olhos grandes e parados como os de um bicho...”
“...
um fiapo de gente encostado ao poste como um animalzinho...”
Por
que a garota lembra um bicho, um animalzinho?
03. De acordo com o trecho responda:
“- E
quando não tem?
-
Quando não tem, não tem - e ela até parecia sorrir, me olhando pela primeira
vez.”
Diante
da pergunta, a atitude da menina muda: ela parece sorrir, ela olha pela
primeira vez para o narrador. Por que a pergunta desperta na menina essa
reação?
04. Diante dos sentimentos do narrador:
“Eu não me continha mais de aflição...”
“... perguntei revoltado.”
“Diminui a marcha, assombrado...”
Identifique esses trechos na crônica e
explique cada um desses sentimentos:
a) Qual a causa da aflição?
b) Qual a causa da revolta?
c)
Qual
a causa do assombro?
05. Recorde esta outra reação do narrador:
“...-
um engasgo na garganta me afogava no que os homens experimentados chamam de
sentimentalismo burguês.”
·
O
que o narrador quis dizer com: sentimentalismo burguês?
06. De acordo com o trecho abaixo responda:
“Meu impulso era voltar, bater na porta
da tal mulher e meter-lhe a mão na cara.
- Como é que você foi parar na casa
dessa... foi parar nessa casa?”
a) O narrador interrompe a frase: “na casa
dessa...”
·
Por
que ele não completa a frase?
·
Complete
você a frase: que palavra você acha que ia falar?
b) Que “culpas” tinha a mulher, para
irritar assim o narrador?
07. De acordo com a mudança de atitude da
menina com relação ao final da história, o que explica essa mudança, ao
aproximar-se do lugar onde morava?
08. A expressão “na escuridão miserável”
aparece duas vezes na narrativa, a que se refere esse termo, tanto no início
quanto ao final do texto.
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